Jean Améry

Só tomei conhecimento da existência de Jean Améry neste ano. Não sei como ele me passou despercebido por tanto tempo. Austríaco, Belga e Judeu, mas sem se reconhecer em nenhuma dessas denominações, sobrevivente das torturas da Gestapo e da SS e dos piores campos Nazistas, ele escreveu uns textos bem desesperançados nas décadas seguintes.

Dizem que a filosofia mais quente de Heidegger tem lugar quando ele se afasta de suas definições mais famosas para tratar do tédio e da angústia. Améry trata de ressentimento, sentimento tão mal afamado a partir de Nietzsche, discute seu lugar no mundo e tenta refletir sobre a possibilidade de continuar vivendo e convivendo depois de suas experiências nos campos de morte.

É possível perdoar aqueles que conviveram bem com suas perdas? O que fazer com as frases que ele testemunhou: “se os judeus estão sendo presos, devem ter feito alguma coisa para isso”. As pessoas são as mesmas. Apenas decidiram “superar”. Mas e se tudo acontecesse de novo, essas pessoas não repetiriam seu comportamento?

Améry acabou se matando. Homem de esquerda, ele era um inconformado com os rumos que ela vinha tomando, acusando a todos de fascismo e dando nova roupagem ao antissemitismo, que passara a ter o nome de antissionismo. Foi um profeta.

Gustavo Theodoro

Integridade e Solidão

Após dar a entender que iria apoiar Sergio Moro nas eleições de 2022, o comentarista da Jovem Pan Caio Coppola, bolsonarista, foi fortemente atacado por seus seguidores. Esses ataques o levaram a uma espécie de retratação, quase um pedido de desculpas, acalmando os ânimos daqueles que o acompanham.

Hamilton Carvalho já abordou (links ao final desse artigo) o tema da psicologia do fanatismo, o custo psicológico de se abandonar sua identidade política, a dissonância cognitiva que faz expulsar novas ideias por conta do desconforto produzido e, por fim, sobre o sentimento do pertencimento e sinalização de identidade. A análise psicológica bem informada nos ajuda a compreender esse perturbador fenômeno que transforma pessoas que jugávamos absolutamente ponderadas em fanáticas disseminadores de Fake News.

Já testemunhei isso quando acompanhei a forma como amigos e conhecidos justificavam a corrupção ou a incompetência petista tendo incialmente por argumento o bem maior que representava um governo a eles alinhado ideologicamente. Quando os fatos passaram a contradizer qualquer possibilidade de racionalização, fatos alternativos eram evocados de modo a preservar a crença até então defendida.

Guido Mantega, o Ministro da Fazenda mais longevo dos governos do PT, reconheceu ter recursos não declarados em conta numerada na Suíça. Antonio Palocci, talvez o mais importante Ministro de Lula e Dilma, confessou ter arrecadado propina com empreiteiros tanto para campanha como para distribuição a membros do partido. Apesar disso, há firme convicção entre os simpatizantes do PT de que todos os processos que os filiados ao partido sofreram nos últimos anos decorreram de perseguição, com alegações inclusive de participação da CIA.

O bolsonarismo não ficou atrás nas racionalizações e na falta de apego aos fatos. Na campanha e no primeiro ano de Governo o discurso contra o Centrão, cujos políticos eram tratados como ladrões, era repetido. Desde o início deste ano, Bolsonaro não para de repetir que sempre foi do Centrão, a ponto de se filar na semana que passou ao partido de Valdemar da Costa Neto, que cumpriu pena na Penitenciária da Papuda, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Foram anos de pregação contra a urna eletrônica. Um grande número de pessoas com camisa da CBF foi às ruas diversas vezes para pedir voto impresso. Após o 7 de setembro de 2021, Bolsonaro tem dito que agora confia no nosso sistema de votação. Essas mudanças súbitas, ao contrário do que seria esperando por nós que não somos versados em psicologia, tem o efeito de aumentar o comprometimento pessoal com a causa e, no caso, com o líder que, na aparência, parece saber o que está fazendo.

Há um outro aspecto que explica a manutenção do apoio a causas que, vistas de fora, estão totalmente arruinadas. O pensamento filosófico sofreu significativa inflexão a partir do final do século XIX e início do século XX com a constatação de que “Deus está morto”, algo que teve forte impacto na condução dos assuntos humanos. A autoridade, a religião e a tradição deixaram de dar suporte ao governante, que passou a depender de contratos para sua manutenção ou, quando era possível, substitutos desses valores que ficaram para trás.

Os EUA, por exemplo, tiveram sua Revolução que fundou a República e promulgou uma Constituição, que, por muito tempo, cumpriu a função que deixou de ser exercida pela autoridade divina dos soberanos. Nas sociedades mais homogêneas, aquelas que se pode atribuir o termo Estado-Nação, critérios étnicos tiveram papel importante no século XX, com as consequências que bem conhecemos, como guerras, eugenia e separatismo.

Após o sopro de otimismo da década de 1990, em que mesmo o pessimista e anti-hegeliano Isaiah Berlin imaginou que as democracias ocidentais iriam se espalhar pelo mundo, nosso século apresentou dificuldades que não antevíamos. O autoritarismo aumentou e democracias consolidadas tiveram incremento em suas características oligárquicas ou plutocráticas. As possibilidades de ação política, de participação efetiva nos debates públicos, eram cada vez menores antes do advento das redes sociais. Com elas, retornou um sentimento de efetiva participação e influência de cada um, retirando as pessoas do ostracismo político, devolvendo-os à ágora, ainda que digital.

Se por um lado o pensamento é algo que só pode ocorrer na solidão, a ação política pressupõe atividade conjunta, cujo sucesso depende de estar de acordo com um certo número de pessoas. Estar entre pessoas agindo em conjunto propicia aquilo que os redatores da Constituição Americana chamavam de felicidade pública, que deveria, no entender deles, ser direito de todos.

Ao mesmo tempo, a radicalização simula uma guerra, em que parece sempre haver um inimigo a ser vencido em batalhas de vida ou morte. Os donos das redes sociais perceberam que algoritmos que destacavam e agregavam extremos atraíam audiência. Um ciclo vicioso se criou, em que a mentira, com suas múltiplas caras, parecia sempre mais atraente que a verdade. A falta de realidade compartilhada, em que as pessoas já não concordam nem quanto aos fatos, levou o centro político a perder a maioria que os regimes democráticos historicamente apresentavam.

O clima constante de guerra gera paixões. Lembro aqui de Robert E Lee, oficial militar na Guerra Civil americana, que disse ser “bom que a Guerra seja tão terrível, se não, nos afeiçoaríamos demais a ela”. Sim, esse clima de guerra dá sentido à vida das pessoas. É guerra sem mortes pode durar mais tempo. Há muitas citações com conteúdo semelhante. Lembrarei de apenas mais uma, de J. Glenn Gray: “A paz expôs um vazio nas pessoas que a excitação permitiu que elas encobrissem”.

Caio Copolla se desculpou e provavelmente não dará mais sinais de que pode abandonar o bolsonarismo em consequência de sua experiência recente. Os que não pertencemos a grupos fanáticos, devemos manter os olhos abertos e as mentes arejadas, pois ninguém está imune aos mecanismos de cooptação que tão bem conhecemos. Antes cético que fanático. Pensar com independência tem um custo, que pode ser até a solidão. Antes sacrificar a presença de outros que a integridade de consciência.

Gustavo Theodoro

O Erro de Kant

Bolsonaro tira máscara de criança

Ouvimos um clamor pela liberdade por parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro sempre que alguma medida sanitária é tomada para preservar a vida das pessoas na pandemia. Na semana passada, vimos os empresários Otávio Fakhoury e Luciano Hang evocarem o direito à liberdade diversas vezes durante seus depoimentos na CPI da pandemia. As medidas de distanciamento social, o direito de receitar e tomar remédios ineficazes, o uso de máscara, o estabelecimento de restrições ao funcionamento do comércio e do serviço, o passaporte sanitário, tudo é combatido com base no mesmo argumento: a defesa da liberdade.

Quase sempre estava implícito nessas manifestações que algum pensador ou alguma tradição respaldava aquela defesa. Liberdade já foi bandeira da esquerda, mas no final do século XX e, especialmente no século XXI, transformou-se em pauta recorrente da direita, em especial do movimento internacionalmente denominado “alt-right”. Parte dessa concepção decorre de um mal-entendido acerca de dois pensadores centrais do século XVIII, Jean Jacques Rousseau e Immanuel Kant.

Rousseau sempre foi um defensor de primeira hora da mais extrema liberdade. Conhecedor das teses de Locke (que avaliava que o homem era mais bom do que mau) e de Hobbes (que tinha avaliação contrária), que, apesar de terem diagnósticos divergentes acerca do ser humano, defendiam, de forma convergente, a existência de um Estado forte, que, se por um lado reduzia a liberdade, por outro traria segurança.

Eram tempos em que a ciência fazia descobertas espetaculares, o movimento dos planetas foi desvendado, leis universais foram estabelecidas, a mecânica newtoniana dava norte para o que a política e as ciências humanas deveriam ser. Rousseau tinha convicção de que o contrato social de Hobbes seria superado por algo mais inovador que preservasse a liberdade individual de todos. A nenhum homem seria solicitada obediência, que lhe roubaria sua própria humanidade, ainda que essa obediência fosse devida a um Estado criado com a aquiescência de todos.

Kant sempre admirou o pensamento de Rousseau. Era um dos poucos autores que sempre mantinha à mão, próximo à sua mesa. Kant era também um aficionado pela liberdade. No curso da Revolução Francesa, ao contrário do conservador Edmund Burke, que lançava seus textos enfáticos denunciando o erro das revoluções, Kant acompanhava com interesse e genuinamente torcia para que esse evento livrasse os homens da necessidade de submissão.

Um homem que vivia sob o jugo da obediência, na visão de Kant, perdia a principal característica da humanidade, equiparava-os aos animais e ao restante da natureza em seus processos contínuos e inevitáveis. Talvez influenciado pelo governo de Frederico, O Grande, que rejeitava, Kant defendia que “um governo paternalista, que trata seus súditos como crianças que não cresceram, é o maior despotismo concebível”.

Na filosofia moral de Kant, o livre-arbítrio é conceito central para o homem responsável. Tendo como pano de fundo o pensamento de Rousseau, influenciado pelo determinismo das outras ciências, Kant acreditava que qualquer pessoa de boa vontade colocada diante de situação que implicava uma escolha, utilizando-se da imaginação necessária a seu conceito de “pensar alargado”, chegaria a uma única conclusão, assim como qualquer outra pessoa de boa vontade. Daí nascem os imperativos categóricos: “Devo portar-me sempre de modo que eu possa também querer que minha máxima se torne uma lei universal.”

Se há um único caminho e ele é o melhor, todo homem responsável ao final “quer” fazer o que “deve”. Para Kant, portanto, era a responsabilidade individual, e não leis, proibições e obediências, que nos levaria à civilização.

Tal como na Física, em que todos que medem uma velocidade encontram o mesmo resultado (desconsiderem a teoria da relatividade), Kant acreditava que todo ser humano tinha condições de pensar por si mesmo e que o fruto desse pensamento resultaria na melhor escolha.  Um grupo de pessoas que assumem suas responsabilidades e fazem o que é certo teria como consequência uma sociedade civilizada.

A teoria de Kant é alvo de muitas críticas e controvérsias, nunca por inconsistência em seu pensamento, mas por falta de aprofundamento em alguns pontos críticos de sua filosofia.  O equívoco do filósofo de Königsberg foi ter imaginado que haveria um momento na história da Humanidade em que a sociedade seria composta apenas de pessoas responsáveis e de boa vontade que nos levariam à extinção de qualquer tipo de autoridade. Todos seguiriam o melhor caminho a partir de seus próprios pensamentos. O comportamento dos bolsonaristas nesses tempos de pandemia é demonstração empírica do erro de Kant.

Gustavo Theodoro

Charge de Claudio Mor @MORtoonOficial

Bolsonaro Anti-Conservador

Nas últimas semanas surgiu nos grandes jornais discussão em torno do voto em Bolsonaro de ditos “Conservadores” que, após terem declarado voto e participado ativamente da campanha, agora se dizem arrependidos, apontando as inconsistências entre o bolsonarismo e o conservadorismo. É, de fato, surpreendente que alguém que se identifique como conservador em algum momento tenha cogitado votar em Bolsonaro.

É certo que o movimento conservador pode em muitos momentos ser confundido com reacionarismo, com nostalgia e até mesmo com algum novo tipo de religião com aspectos aproveitados de características do cristianismo. São poucos os autores conservadores que seriam capazes de apontar semelhanças entre esses movimentos.

Prudência talvez seja a característica comum dentre as correntes que compõem o movimento conservador. Basta tomar conhecimento de alguns momentos-chave da vida de Jair Bolsonaro para asseverarmos que não há traços dessa característica nele. Vamos nos lembrar de que ele, quando era Tenente do Exército, elaborou croqui, de próprio punho, com planos de colocar bombas na adutora do Guandu, no Rio de Janeiro, em sua luta por melhores salários. Posteriormente, defendeu o assassinato de parte da população brasileira, o fuzilamento do Presidente da República e o fechamento do Congresso como medidas necessárias para a melhoria do Brasil, mesmo que no processo morressem inocentes.

Esse desprezo por vidas inocentes deu as caras novamente com a emergência da Covid-19, que levou o Brasil a ser referência negativa na mitigação dos efeitos da pandemia. Na história moderna são os defensores das revoluções que, em geral, consideram aceitável a perda de vidas em busca de um bem maior: o “progresso” ou uma “nova sociedade”. É a herança do iluminismo e da Revolução Francesa que justifica a perda de vidas inocentes em troca de um futuro benefício da sociedade. Lembremo-nos de Sartre, que defendia que “julgássemos o comunismo por suas intenções, não por suas ações”, ao admitir a existência dos campos de concentração. Nada está mais distante do conservadorismo do que essa forma de ver o mundo.

Outra característica marcante do conservadorismo é o ceticismo. Ao contrário daqueles que têm como certo que o futuro da sociedade será estável, tranquilo e livre de conflitos, como vimos nas expectativas em torno do Comunismo de Karl Marx e com o fim da história de Francis Fukuyama, o conservadorismo reconhece a imprevisibilidade da política, entende que mesmo as melhores intenções podem levar aos piores resultados e, por isso, prefere melhorias incrementais às ações disruptivas. A certeza, a partir da visão de Hegel da história, de que o destino de qualquer sociedade é o Comunismo ou a sociedade liberal ocidental leva a tentativas de apressar a história por meio de revoluções ou guerras para espalhar democracias liberais pelo mundo.

O conservadorismo sofre influências ainda das sociedades gregas e romanas, em especial desta última, que se moveu em torno a necessidade de preservação de Roma e da importância de sua fundação, tal como os americanos hoje reconhecem a importância da Revolução Americana, das ações dos fundadores da república e de sua Constituição. A mensagem é de preservação das instituições, da necessidade de controles sobre os homens públicos com algum poder e da importância da preservação do espaço público para o exercício da política.

Evidente que, como qualquer conceito, não é possível esgotar todas as características do conservadorismo sem enfrentarmos alguma contradição. Edmund Burke, que para muitos é uma das maiores referências do conservadorismo, até por sua renhida oposição à Revolução Francesa, escrevia seus textos de uma forma eloquente e emocional, nem sempre condizente com a prudência e o ceticismo próprios de seu campo de pensamento.

As dificuldades de conceituação, no entanto, não chegam ao ponto de aproximar o bolsonarismo do conservadorismo. Bolsonaro é um oportunista que soube se aproveitar dos flancos deixados pela “alt-left” e suas infindáveis discussões de gênero, raça, cor, da cultura de cancelamento que ela trouxe consigo e do anseio por alguém não ligado à corrupção revelada pela Lava Jato. Bolsonaro soube, ainda, atiçar os preconceitos de um Brasil profundo, que resiste às mudanças no campo dos costumes e à redução da religiosidade de parte da sociedade ocidental; que busca soluções rápidas no combate à criminalidade por meio de ações em que nem sempre os direitos humanos são observados. A cereja do bolo de sua eleição foi sua transformação em um liberal no campo da economia com a aproximação de Paulo Guedes.

O suposto conservador que votou em Bolsonaro deixou de lado as principais referências de seu campo de pensamento: a prudência e o ceticismo. Até hoje vemos autodenominados conservadores com fé na moderação de Bolsonaro e relevando suas atitudes imprudentes. Se você é um deles, talvez seja hora de reavaliar sua concepção de si próprio, pois Bolsonaro não passa de um ignaro reacionário aspirante a tirano.

Gustavo Theodoro

Realidade Compartilhada

A pandemia do coronavírus no Brasil tornou ainda mais visível a imensa divisão de nossa sociedade. Constato que os meios de informação já não são compartilhados, a realidade é mediada por uma imprensa não profissional. Os aplicativos de mensagem facilitaram a disseminação de informações falsas. Milhares de vozes se misturaram, provocando imenso ruído e diminuindo nossa capacidade de distinguir fatos de versões.

Esse tipo de funcionamento das mídias sociais formou as conhecidas bolhas, que dividem grupos expostos a realidades alternativas. A consequência disso é a aparente impossibilidade de trocas de experiência e visões do mundo.

Sócrates usava seu método descrito nos diálogos de Platão com único objetivo: a busca da verdade. Essa forma de debater está sendo gradualmente superada pelas técnicas utilizadas nas redes sociais, com o “cancelamento de pessoas” e o bloqueio dos que pensam diferente. Sem conversar não é possível encontrar pontos em comum a partir dos quais o diálogo é possível.

Não afirmo que conversar sempre permita a aproximação das pessoas. Resgato aqui A Pastoral Americana, o premiado livro de Philip Roth que, em um de seus aspectos, relata a dificuldade de diálogo entre Seymour Levov, um judeu que acreditava nos EUA liberal e tolerante, e sua filha, Merry, que passa por um processo de radicalização.

Fiel a seu sistema de crenças e a sua fé na capacidade do ser humano de agir racionalmente, Seymour tentou de todas as formas se comunicar com Merry. O diálogo entre adolescentes e adultos quase nunca é simples, visto que eles enxergam o mundo de ângulos diferentes. Enquanto o jovem tem expectativas quanto ao futuro, não teve oportunidade de testar sua potência nem por em prática suas ideias, os pais em geral já acumularam frustrações, derrotas e vitórias como parte da construção de seu lugar do mundo, tornando-os mais pragmáticos.

Nessa dissociação, o diálogo torna-se problemático. Daí a importância que a filosofia já deu às “pessoas de boa vontade”, aquelas cujo objetivo não é vencer o debate, mas conhecer o ponto de vista do outro para, talvez, inclusive acolhê-lo. Sendo uma idade de afirmação, a adolescência costuma desafiar até boas condutas do mundo adulto. Esses desafios darão contornos finais à personalidade do jovem em formação. A combinação entre idade desafiadora e divergência de perspectivas torna árdua a busca por pontos de contato.

Há semelhanças entre esse desencontro e o processo a que testemunhamos de separação dos polos políticos. Não se percebe boa vontade nos debates. Não há busca por troca ou compreensão dos pontos de vista diferentes. A emergência de termos como “lacrar” e “cancelamento” é demonstração disso. A “lacração” retrata um golpe bem aplicado contra o inimigo para regojizo de sua torcida, enquanto o “cancelamento” é o apagamento de alguém que teria produzido um pensamento “não adequado”. Não é assim que vamos evoluir como sociedade e pelo menos o mundo adulto não deveria admitir a persistência nesse caminho.

O comportamento extremista permeia as redes sociais e parece não haver como evitá-lo completamente. No entanto, é grave que a chamada “imprensa alternativa” o tenha adotado como prática cotidiana. Eu, que não sou nem petista nem bolsonarista, pude acompanhar a evolução desse tipo de fenômeno. Os blogs de esquerda da época dos governos petistas pouco diferiam da imprensa bolonarista hoje existente. O tom das críticas, no entanto, subiu no bolsonarismo.

Parece mesmo haver um movimento organizado para enfraquecer as instituições com vistas a um golpe no estilo Hugo Chávez, de quem Bolsonaro já se declarou admirador. A reação das instituições, no entanto, parece ainda ter forças para, se não impedir, pelo menos retardar o processo. Não se sabe até quando.

O mínimo que deveríamos aprender de nossa história recente é que abandonar a imprensa tradicional não nos traz benefício a longo prazo. Se há críticas pertinentes a fazer quanto a sua atuação, há um código de ética a ser seguido pela mídia tradicional, como atentar para os fatos, ouvir o outro lado e desvincular a parte comercial da editoria de notícias. A chamada mídia alternativa não cumpre quase nenhuma dessas regras, servindo para alimentar uma realidade paralela que, ao final, torna impossível até mesmo conversar com os outros, por absoluta falta de realidade compartilhada.

Ao final, as pessoas passam a acreditar mesmo que a ciência já comprovou os benefícios da coloroquina, que a auditoria da dívida nos dará dinheiro para nos dispensar dos sacrifícios, que o comunismo está para voltar a qualquer momento e que o coronavírus foi inventado para apressar o processo e que o novo marco legal do saneamento irá nos privar da água limpa e barata. O aprofundamento nesses assuntos revelaria que nenhuma das afirmativas está correta. Em sentido contrário, a “mídia alternativa” não se cansa de propagar teses incorretas e inverdades a respeito desses temas, tornando suas plateias – uso aqui um termo duro – fanatizadas.

A reconstrução do espaço público passará, inevitavelmente, pela recuperação de uma realidade compartilhada, sobre a qual possamos divergir e convergir, como adversários ou aliados políticos, mas nunca como inimigos ou militantes de seitas. Uma pandemia não apresenta lado positivo. Podemos, no entanto, fazer uso dela para induzir momentos de reflexão diante da crise, a partir dos erros que temos cometido, para que possamos dar passos na direção de uma sociedade mais empática, com maior capacidade de resolver conflitos e capaz de dar respostas às sempre crescentes demandas que se apresentam.

Para ajudar nesse processo deixo um único conselho de ordem prática: informem-se mais pelos jornais e menos pelas redes sociais. Escrevendo de forma ainda mais sucinta: assinem e leiam jornais.

Gustavo Theodoro

Frente Ampla

Cresce na sociedade a avaliação de que o Presidente Jair Bolsonaro não está à altura do cargo que ocupa. Os motivos apontados são vários e vão desde a falta de respeito às regras básicas de convivência democrática até o cometimento de crimes comuns. Acompanhada da redução na popularidade presidencial, em especial diante de suas atitudes no enfrentamento da Covid-19, o impeachment já á amplamente discutido na sociedade.

As restrições sanitárias impedem grandes manifestações populares. Ruas vazias não empurram o legislativo, que segue entorpecido aguardando a pandemia dar uma trégua para que talvez as reuniões presenciais possam ajudá-los a encontrar caminhos para o país.

Enquanto isso, o que se vê são iniciativas geralmente lideradas pela sociedade civil, que busca unir a oposição ao Governo em torno de uma causa comum. O processo de montagem dessa frente revelou as dificuldades que teremos que superar para que nossa sociedade possa ser reconstruída. A lista de vetos costuma ser infindável: “Eu não entro em lista com FHC”, “Se Moro assinar, eu não assino”, “O PT não deve fazer parte”, foram algumas das frases proferidas nas semanas que passaram. É de se perguntar se somos capazes, conjuntamente, de termos foco para atingirmos um objetivo importante que está além da luta política diária.

As experiências de acirramento das divisões, das brigas em grupos familiares e dos rompimentos de antigas amizades deveriam nos ensinar que algo não está correto na forma como temos nos portado. Política deveria ser o meio para construímos algo a partir das diferenças e não apesar delas.

O assessor da Presidência, Felipe G. Martins, escreveu o seguinte em seu twitter nesta semana: “Dizia Clausewitz que politica é a continuação da guerra por outros meios”. A citação está incorreta de uma maneira reveladora. A citação correta do general prussiano é, na verdade, que a guerra é a continuação da política por outros meios. Não se trata, evidentemente, de confusão: na visão dos que ocupam a presidência no momento, política é guerra e o adversário é o inimigo; logo, deve ser destruído.

Há tempos estamos contaminados por essa forma de ação política. Um antigo parlamentar do então PFL queria o fim do PT. Este, por sua vez, cultivou a visão de política como guerra, tal como agora defende Felipe G. Martins. O resultado disso são as dificuldades que observamos nas tentativas de formação de uma maioria democrática, multipartidária.

Para este momento é bom que recordemos o exemplo de Albert Camus, que, em 1946, um ano após a libertação da França da ocupação nazista, compreendia a necessidade de partilhar o país com seus compatriotas. Por sua atuação corajosa na resistência francesa, tornou-se uma referência no processo de reconstrução do país no pós-guerra.

Naquele momento, a situação era muito pior do que a nossa: enquanto o terror imperava, a maioria da população preferiu não se envolver e viver sua vida da maneira que melhor servisse a seus interesses. Havia ainda a questão dos colaboracionistas, que tinham inevitavelmente que ser incluídos em qualquer processo de reconstrução que almejasse o sucesso.

Sartre e, principalmente, Simone de Beauvoir cobravam de Camus uma postura mais radical com relação aos adversários políticos. A filósofa inclusive criticou a falta de menção direta ao fascismo em seu livro de 1947, A Peste, que retratava como metáfora o regime de confinamento, com o nazifascismo substituído pela peste. Mas Camus acreditava que política se faz primeiro com verdade, depois com tolerância e diálogo.

Voltando à nossa realidade, temos que ter em mente que cerca de 60% da população já votaram no PT e 55% votaram em Bolsonaro. Se a ideia da frente é constituir um grupo de pessoas que sempre pensaram como nós, estamos querendo fundar, talvez, um partido, não criar um movimento capaz de recriar o ambiente democrático e fazer frente, de forma coesa e incisiva, ao movimento autoritário que temos testemunhado.

Afastemo-nos, portanto, dos extremos, dos cancelamentos e dos vetos. O objetivo é retomar a ideia de que partilhamos um país e teremos que nos entender entre nós mesmos. Quando conseguirmos construir uma maioria, podemos nos lembrar de um trecho de Camus retratando o momento em que a epidemia começou a refluir: “Pode-se dizer, aliás, que a partir do momento em que a mais ínfima esperança se tornou possível para a população, o reinado efetivo da peste tinha terminado”. De minha parte, trabalharei pelo fim do império da peste.

Gustavo Theodoro

Nada Será Como Antes

O isolamento social exigido para evitar a rápida disseminação do Covid-19 promete alterar o modo como vivemos nossas vidas. O biólogo Atila Iamarino formulou uma frase no programa Roda Viva, exibido em 30/03/2020, que causou perplexidade na audiência: “Após o coronavirus, o mundo não voltará a ser o que era”.

Misturaram-se sentimentos de perdas, de nostalgia e de medo do incerto futuro. O sentido pretendido pelo divulgador científico era, no entanto, mais prosaico: dizer que os períodos de quarentena e relaxamento iriam levar talvez até dois anos. Depois disso, a vida dificilmente voltaria a ser como antes porque as pessoas não seriam mais as mesmas de janeiro de 2020. Aquele mundo que conhecíamos dificilmente existirá novamente.

No campo da economia, por exemplo, velhas certezas já estão sendo questionadas. Trump insistia com seus economistas que os EUA deveriam voltar a ter um grande parque industrial. As teorias liberais predominantes consideravam positiva a redução dos custos por meio do deslocamento da produção mundial para os países asiáticos de mão-de-obra barata. A crise no fornecimento de materiais médicos, respiradores e princípios ativos para remédios parece dar razão à Trump.

O aparentemente superado discurso da esquerda brasileira defendendo a necessidade de o Estado planejar o desenvolvimento industrial pode voltar a ser atual. A proteção de setores “estratégicos” (ainda há um certo constrangimento ao usar este termo) e a garantia de fabricação nacional de, por exemplo, princípio ativo de remédios e equipamentos médicos estará na ordem do dia quando tudo isso acabar. Economistas desenvolvimentistas já estão sendo requisitados para o debate econômico. Liberais como Paulo Guedes poderão ter dificuldades para entender a mudança que já está em operação.

O período de isolamento deve promover mudanças ainda nas relações de trabalho e de consumo, acelerando processos que já estavam em andamento. Não há motivo de deslocamento para executar tarefas que não exijam presença física. Os ultrapassados chefes que gostam de manifestar seu poder por meio de controle de horários terão suas vidas abaladas.

A adesão em massa ao comércio eletrônico pode ocasionar um ponto de não retorno para o comércio de rua. As lojas, nesse cenário, tenderiam a se reduzir e a se transformar em mostruários, quando necessário.

O impacto sobre a vida doméstica não será desprezível. A necessidade de intenso convívio familiar provocará alterações irreversíveis. Como bem ressaltou Andrew Salomon, “relacionamentos sólidos serão fortalecidos, mas laços frágeis se partirão”.

A classe média brasileira terá oportunidade de analisar sua relação com os trabalhadores domésticos. Os que não cozinhavam estão tendo que se virar. Os que nunca valorizaram o serviço de limpeza e a lida com as roupas irão repensar seus conceitos. Uma vida mais simples, com residências menores, pode ser revalorizada, assim como os quintais em que se possa tomar sol e plantar.

A forma de moradia adotada pela maioria da população, em grandes cidades, com uso predominante de transporte coletivo, em ambientes apertados, cafés e restaurantes com ar condicionado ou aquecimento, escritórios fechados, tudo estará em xeque quanto tudo isso passar. O impacto sobre as crianças da geração Covid-19 tenderá a ser mais duradouro.

O aumento da riqueza das classes média e alta e o barateamento das passagens aéreas levou ao aumento do trânsito das pessoas entre países. Nos últimos quinze anos, o número de pessoas que faz viagens praticamente dobrou. Viajar deixou de ser uma opção de lazer para ser uma obrigação, transformando-se quase em requisito de aceitação social. Ocorre que esse estranho hábito tornou quase instantânea a disseminação de agentes patogênicos. Isso estará em discussão quando tudo isso passar.

O mito do progresso contínuo e a autoimagem da humanidade como ser além-do-animal poderão sofrer abalos. Os pensadores conservadores nunca deixaram de reconhecer que a inteligência humana criava desafios que a própria inteligência humana poderia não resolver. Tudo aquilo que nos levou a ter energia e produtividade para alimentar e aquecer bilhões de seres humanos teve também como efeito mudanças climáticas que, no limite, poderão colocar em risco a própria existência da vida humana na terra.

O ideia do homem como animal superior que sempre progride, doma a natureza e transforma a si e a tudo ao seu redor é um mito que decorre do Iluminismo e de uma de suas expressões: o darwinismo. A vida asséptica das grandes cidades oblitera a visão de nossa condição de animal, que pode pensar, sonhar, projetar e ter consciência de sua morte, mas que segue sendo um frágil mamífero primata, sujeito a epidemias e extinção.

O isolamento poderá colocar a humanidade em contato com aquilo que ela tanto evita, que é olhar, em silêncio, para dentro de si mesmo. Nietzsche dizia que é necessário ter coragem para isso: “Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você“.

A superação da crise não fará nascer um novo homem. Contrariando os progressistas, tampouco sairemos disso melhores, nem construiremos uma sociedade mais igual e harmoniosa. Nada será como antes? É difícil responder. Sabemos apenas que muitas de nossas certezas estarão em xeque e que, provavelmente, não iremos recuperar a vida que já tivemos.

Gustavo Theodoro

Homens Sem Qualidades

Berenice Seara noticiou hoje em sua coluna do Extra que os Vereadores do Rio de Janeiro inovaram diante da pandemia mundial do Covid-19 e estão realizando sessões de modo virtual. Cada um de sua casa faz seus discursos, encaminha votações e aprova projetos.

Segundo a colunista, o privilégio de trabalhar de casa não foi estendido aos servidores responsáveis pela elaboração das atas das sessões. Esses continuam obrigados a se dirigir às instalações da Câmara para receber, corrigir e transcrever as falas das excelências.

Essa notícia provocou em mim duas reflexões, que passo a elaborar. A primeira delas se relaciona à incrível sobrevivência do regime de castas herdado dos tempos coloniais. O elevador de serviço ainda é o melhor símbolo desses tempos. A expressão “você sabe com quem está falando?” é outro bem conhecido resquício dessa era que se recusa a ser superada.

Nos tempos de coronavirus, essa faceta se revela mais facilmente. Os edis haviam suspendido todas as atividades da Câmara de Vereadores quando os números da pandemia no Brasil se agravaram. No entanto, alguns políticos começaram a se destacar, inclusive nacionalmente, por suas firmes e propositivas ações no combate à crise.

Os nobres vereadores resolveram, então, retomar as sessões na proteção de seus lares. “Não saiam de casa”, é o lema desses tempos. Até aí tudo bem. Cada pessoa que fica em casa pode salvar várias vidas. Ocorre que o egoísmo típico do sistema de castas enevoa a visão, ensurdece os ouvidos e empalidece a empatia. “Se eu estou bem está tudo bem”, devem formular seus pequenos egos.

E lá foram os servidores concursados trabalhar “presencialmente em uma sessão virtual”. Não riam. É isso mesmo. Trabalho presencial em sessão virtual. As figuras públicas, em momentos de crise, dão exemplo para a sociedade. Há forte campanha para que a classe média dispense suas diaristas e para que os serviços informais sejam remunerados mesmo sem realização, tudo para que as pessoas “fiquem em casa” com possibilidade de subsistência. Fiquem em casa, eu repito. Os vereadores do Rio não se preocuparam em dar o exemplo liberando seus funcionários.

Outro aspecto que nunca deixa de me espantar nesses casos é o comportamento de servidores de chefia, a quem caberia advertir os vereadores de que a recomendação de ficar em casa é para todos que não executem atividade essencial. O que causa espanto, nesse caso, é que as próprias chefias estão expostas desnecessariamente ao risco de adquirir e espalhar o coronavirus. E nem assim reagem.

Platão dizia que o espanto é a porta de entrada para a filosofia. E esse tipo de evento, a incapacidade de pensamento e empatia, gera um sentimento perturbador na forma como julgamos o ser humano. As teses sobre o extermínio humano talvez não sejam, afinal, tão improváveis.

A neutralidade ética é característica desses tempos líquidos, apropriando-me aqui do termo utilizado por Zygmunt Bauman. O mal absoluto raramente dá suas caras, e o mal líquido se esconde atrás da neutralidade ética, que segundo Orwell, dá origem a nossa capacidade de sermos seletivos ao lidar com a angústia e o sofrimento humanos. É como se houvesse um operador habilidoso com capacidade de ligar e desligar a sensibilidade desses pequenos seres.

O mal absoluto é substituído pelo mal líquido, impessoal, em que mortes são tratadas como danos colaterais, em que a opressão vem encartada em linguagem tecnicista, em que a injustiça é mimetizada em equidade. A satisfação que o ego encontra em obedecer desliga a capacidade humana da empatia.

Nesse ambiente, os homens pequenos, sem qualidades, encontram seu sentido de vida. É dentre esses que Hannah Arendt classificou Adolf Eichmann, cuja figura levou a pensadora a cunhar a expressão “banalidade do mal” para o mal impessoal do cumpridor de ordens. A burocracia pública parece ser ambiente propício para o desenvolvimento desses seres.

Não sou dos que têm fé na evolução da sociedade ou no ser humano. Nossa história é repleta de avanços e retrocessos. Minha experiência me leva a crer, no entanto, que aquele que pratica injustiças com frequência costuma perder aquilo que mais valoriza. É nessa hora, retirada a teia de ilusões que lhes dá sustentação, que o julgamento moral começa a estar à espreita, pois segundo Kant, é o poder que corrompe o livre exercício da razão. Sem ele, os atos passados estão de volta ao escrutínio moral, assombrando suas vidas futuras.

Estamos em crise. É na crise que os humanos se revelam. Torçamos para que, em breve, todos os não essenciais estejam em casa. E nunca é demais repetir: fiquem em casa.

Gustavo Theodoro

O “OSCAR” sem Proteína

A cerimônia do Globo de Ouro de hoje à noite não servirá carne no jantar para os convidados. A refeição vegana atende aos imperativos dos progressistas da sociedade americana contemporânea. Em meio a reclamações acerca da indicação de Rick Gervais para apresentar o prêmio, a ausência de proteína no cardápio parece uma concessão ao politicamente correto.

Rick Gervais é acusado de não ser sensível às pautas identitárias. Além disso, o humorista já fez piadas com o alcoolismo de Mel Gibson e com os filhos adotivos de Angelina Jolie. Chegou a fazer humor ligando Roman Polanski ao temas de pedofilia. Pelos critérios atuais da cena política do Partido Democrata americano, o mínimo que se exigiria seria o banimento de Rick Gervais.

Gradualmente, os meios de comunicação estão descobrindo que os temas identitários, apesar de dominantes nos ambientes culturais progressistas, não interessa à maioria da população. Como a escolha do apresentador do Globo de Ouro coube à NBC, dona dos direitos de transmissão da cerimônia, foi contratado aquele que, segundo avaliação dos executivos, seria aprovado pela audiência.

São muito estreitos os caminhos que podem ser percorridos pelos antenados com as causas identitárias. Charlize Theron protagoniza o filme “O Escândalo”, que trata de uma história real envolvendo um executivo da odiada Fox News, Reger Ailes. Ele foi afastado da empresa após denúncias das principais âncoras da emissora, dentre as quais Megyn Kelly. Em princípio, seria um filme bem aceito pela costa oeste americana.

Megyn Kelly, no entanto, personagem de Charlize Theron, apesar de apresentada como vítima no contexto do #MeToo, deveria ser retratada de com cuidado. Afinal, era alguém que considerava um absurdo retratar o Papai Noel como negro, assim como não via problemas em quem pintava o rosto de preto para se fantasiar para o Halloween. Para que fosse viabilizado o projeto, foi necessário deixar claro que a vítima também era controversa.

Nem todos os problemas podem ser resolvidos resolvidos pela simples vontade das pessoas. A jornalista brasileira Ana Maria Bahiana é uma das eleitoras do Globo de Ouro. Ela lamenta que todas as produções que concorrem a melhor filme, dez no total, sejam dirigidas por homens brancos. Ela confessa ter votado em “um monte de filmes de mulheres”, mas ainda assim só homens foram indicados, mesmo o prêmio tendo a maioria dos votantes mulheres.

Na visão de mundo dessas pessoas, “homem branco” é quase um xingamento, ainda mais quando reunidos em grupo.

Enquanto isso Tarantino não podia dar uma entrevista sobre “Era uma vez em… Hollywood” sem que lhe perguntassem a razão de seus protagonistas serem masculinos. Chegaram a contar o número de palavras pronunciadas por Margot Robbie para comprovar a misoginia do diretor. “Para que contratar uma atriz como ela e não lhe dar falas?”. São estreitos os caminhos a percorrer para quem pretende estar em sintonia com os progressistas americanos.

Para completar o cenário, é de se esperar que os premiados façam piadas “inteligentes” sobre Trump. Enquanto o presidente americano segue se comunicando diretamente com o subempregado dos estados do norte – que, ao final, tendem a decidir as eleições novamente – a preocupação da maioria dos presentes à cerimônia de hoje é representar o papel que seu grupo minoritário espera. Ainda que, para isso, seja necessário se alimentar apenas de legumes cozidos. Pelo menos a bebida alcoólica não tem proteína e está liberada na premiação, o que nos faz esperar uma festa divertida, apesar de tudo.

Gustavo Theodoro

A Inútil Filosofia

Em uma das primeiras manifestações depois de empossado como Ministro da Educação, Abraham Weintraub declarou que iria reduzir as verbas destinadas ao estudo e ao ensino de filosofia e sociologia. Entre exemplos do Japão e alegações de respeito aos recursos públicos, foi sinalizado que o objetivo mais importante da universidade era permitir ao aluno encontrar, depois de formado, “um ofício que gere renda”.

Não se pode atribuir ineditismo a esse tipo de manifestação. Membros dos Governos FHC, Lula e Dilma em algum momento fizeram manifestação semelhante. Há uma terrível desconfiança em relação a essas áreas do conhecimento. Lá mesmo na inauguração da Filosofia Ocidental, na antiga Grécia, Sócrates foi condenado à morte acusado de corromper os jovens com seus debates inconclusivos.

Heidegger, possivelmente o maior e mais controverso filósofo do século XX, flertou com o Nazismo em 1933, quando assumiu a reitoria da Universidade de Freiburgo, demitindo-se da função pouco tempo depois. Mesmo tendo demonstrado apoio ao Nazismo nos primeiros momentos, antes da Segunda Guerra Heidegger já era visto com desconfiança pela elite Nazista, que considerava seus textos incompreensíveis e inúteis (há muito de verdade nessa afirmação). É bem conhecida a afirmação de Goebbels, Ministro da Propaganda de Hittler, que teria dito< “quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”. Isso partindo de alguém que certamente leu Kant – apesar de ter demonstrado em seu julgamento erros de compreensão dos imperativos categóricos – e apreciador de música erudita.

No bloco comunista, só autores referendados pelo Partido Único podiam publicar seus textos. Como era de se esperar, os escritos produzidos nesse tipo de ambiente não sobreviveram bem ao tempo. Salvador Allende, assim que assumiu o Governo do Chile, também instou a universidade produzir mais conhecimento útil, criticando indiretamente a tendência de aumentar a alocação de profissionais da área de humanas.

Observando por ângulo contrário, é cada dia mais difícil em todo mundo conseguir uma posição permanente em universidades na área de filosofia. Nos EUA, a concorrência chega a 300 doutores por vaga. Por isso é comum ouvirmos histórias de profissionais com três ou quatro PhDs. Nas universidades anglo-saxônicas, o pós-doutorado é, na verdade, uma forma de concessão de vínculo temporário aos milhares de doutores em filosofia e ciências sociais disponíveis no mercado.

Alan Guth, autor de uns dos artigos mais importantes do século XX na área de cosmologia, tem lançado em seu currículo quatros pós-doutorados. Quando questionado sobre isso, o famoso autor da teoria da inflação do universo disse que os PhDs se explicam pela dificuldade que ele teve em conseguir uma posição permanente em universidades. Os PhDs permitiram a ele seu sustento até que seu artigo mais importante fosse publicado e causasse grande impacto científico. Só então ele foi convidado para ser membro definitivo de um corpo docente.

Lucky Jim, escrito na década de 1950 pelo escritor inglês Kingsley Amis, retrata com um humor desconsertante a saga de Jim Dixon , um jovem estudante de história medieval em busca por colocação como docente em uma universidade de segunda linha. O retrato demolidor do ambiente universitário, a fábrica de intrigas, a simulação de profundidade, a desesperada busca por reconhecimento, as tentativas de afetar ambiente criativo, artístico, filosófico, nada escapa ao autor. Para quem conhece o meio, o livro é hilário.

No ambiente religioso, as dúvidas dos clérigos quanto à fé são tão comuns quanto dentre as pessoas comuns. Do mesmo modo as dúvidas sobre a necessidade de estudo das ciências humanas não são exclusivas da sociedade civil. Por que estudar uma ciência não empírica, de resultados não verificáveis, que produz textos em sua maioria herméticos, destinados preferencialmente a seus pares e que quase nunca, no caso brasileiro, transborda as fronteiras nacionais? Não haverá resposta fácil a esta pergunta.

A situação é agravada por uma característica exibida pelas ciências humanas, em especial pela filosofia: a impenetrabilidade. Kant é constantemente retratado como um autor de difícil leitura, mais por sua ambição de tratar de todos os aspectos da questão estudada e pela ausência de disposição em exemplificar, menos pelo hermetismo de seus textos. Nietzsche criou dificuldades muitas vezes insuperáveis à sua interpretação, seja pela opção pelas metáforas e alegorias, seja pela extensão de sua obra, seja pela falta de linearidade de seu pensamento. Heidegger escreveu um livro quase impenetrável (Ser e Tempo), incompleto (o prometido segundo volume nunca foi escrito), mas que ainda assim continha uma filosofia que, em diversas passagens, justificava seu estudo.

No final do século passado, Alan Sokal publicou um poderoso ataque ao estudo das ciência humanas. O físico Sokal havia se tornado famoso ao conseguir publicar um artigo na revista Social Text. A leitura cautelosa do artigo revela um notável embuste intelectual, com propostas non sense como a de que a “gravidade quântica” era uma construção social e linguística. O êxito na publicação do artigo revelou que a técnica escrever textos herméticos, tão cara aos pós-modernos, tinha livrado os pensadores da necessidade de significado. Em outras palavras, muitos dos textos publicados, repletos de citações, não passavam de embustes repletos de erudição vazia.

Logo depois Sokal escreveu um livro (Imposturas Intelectuais) abordando a utilização de conceitos científicos de base matemática pelos pós-modernos. Difícil ter o mesmo apreço intelectual por Jacques Lacan, Jean Baudrillard, Julia Kristeva, Deleuze e Guattari depois das análises do físico americano.

O silêncio dos intelectuais em momentos chave da história ajudaram a solapar seu prestígio. Os exemplos são muitos, vão desde o apoio de Sartre à URSS após os julgamentos forjados e após a invasão de Praga, até o apoio de nossos intelectuais ao petismo nos anos recentes.

O embate entre sociedade, Governo e a área de humanas não terá fim. A disputa por verbas e provedores é parte integrante da história das ciências sociais. As críticas a sua utilidade jamais lhe deram fim, tampouco a falta de verbas. O que de fato limita o pensamento é a censura, a ditadura e, em especial, o totalitarismo. Ainda que Weintraub tenha intenção de extinguir o estudo da filosofia, ele não obterá êxito. Orwell fez um personagem dizer em “1984” que “poder é estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhe a forma que você quiser”. Por enquanto não temos um Governo com esse poder.

Gustavo Theodoro